Menos é mais.
Li um dia dessa uma matéria que está no site: Literatortura.com.
“Segundo a “lenda”, propuseram a Hemingway escrever um conto que não ultrapassasse 6 palavras. E ele assim o fez”. O conto é esse aqui:
Vende-se: sapatos de bebê, sem uso.
“Você imagina tudo que veio antes, o
casal, a gravidez da mulher – quem sabe aquela tão esperada, desejada? -, a
possível preocupação com o dinheiro – no fim eles vendem o sapato, não apenas
jogam fora -, a felicidade de pensar na criança, todos os meses de gestação, o
nascimento e, por fim, a morte. O bebê não teve nem a chance de usar o enxoval.
E o peso da tragédia familiar é atirado em nós sem um mínimo de preparo”.
Pensei sobre isso e cheguei a conclusão que existe outro conto, mais conciso ainda, tem um peso muito maior do que esse e nos dá um campo imaginativo inesgotável.
Permita-me apresentá-lo.
Pensei sobre isso e cheguei a conclusão que existe outro conto, mais conciso ainda, tem um peso muito maior do que esse e nos dá um campo imaginativo inesgotável.
Permita-me apresentá-lo.
Meu
irmão apareceu com um livro chamado “A Arte da Narrativa Bíblica” de Robert
Altler que me fez parar pra pensar. No livro, ele apresenta uma maneira de analisar
a Bíblia que chega a ser tola de tão simples: ao invés de apenas tentar
desacreditá-la, que tal analisar os textos hebraicos e cristãos com as mesmas
ferramentas e o mesmo olhar que aplicamos a textos consagrados da literatura
ocidental como Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Milton e outros? Porque somente
falamos que “fulano não escreveu o livro tal”, ou “os padres safados incluíram coisas
na Bíblia que não estavam lá” ou outras teorias que dominaram o imaginário e os
estudos bíblicos a partir do século XIX com as chamadas “Alta Crítica” e “Baixa
Crítica”. Muita gente passou a abandonar a Fé e num simplismo idiotizante, a
incentivar a postura de menosprezo ao texto bíblico.
Altler
não cai no simplismo de tratar o texto de maneira ingênua, como se ele fosse
uma única estrutura, mas aplica uma crítica soberba ao texto. O trecho que me
chamou a atenção é o que ele diz que com pouquíssimas “peças” textuais, os
escritores da Bíblia conseguiam impactar o leitor, fazê-lo pensar e repensar o
texto, buscando com as parcas informações recebidas pelo texto bíblico,
utilizar referencias anteriormente lidas para construir cenários, características
dos personagens e até mesmo completar a história com sua própria imaginação. Um
exemplo rápido: Davi é o personagem com o maior número de informações dadas
pelo texto bíblico (pelo menos quatro livros são utilizados pra contar sua
história), mas até a morte de seu filho, fruto de um adultério com Bestseba, a
Bíblia não nos informa nada sobre seus pensamentos mais sutis, suas aflições
peculiares, suas vontades absolutas e seu modus
operandi intimo. Traduzindo: Davi está
a toa em casa, enquanto seu exército luta. Por quê? Não sabemos ao certo. Ele
está no seu palácio e de uma sacada (será?) vê uma mulher tomando banho. Ele a
deseja, manda buscá-la e “manda ver”. A mulher fica grávida. Davi orquestra um
plano pra matar o marido dela. Consegue. Depois manda trazê-la ao palácio, só
que o pecado é descoberto. Davi chora, se arrepende, mas a sentença de Deus é
que seu filho morra. “E o SENHOR feriu a criança que a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente. Buscou Davi a Deus pela criança; jejuou Davi e, vindo, passou a noite prostrado em terra”.
Até
aquele momento, Davi é uma máquina, ele apenas reage as circunstâncias como um “Schwarzenegger”. Apenas no
episódio da morte de seu filho é que realmente entramos na cabeça de Davi,
ainda assim de forma não totalmente explicitada pelo texto. O autor mostra um
Davi se acabando em lágrimas, mas é econômico em sua descrição da dor.
O
autor compara isso com outro episódio emblemático da literatura ocidental: a
cena extremamente tocante do pedido do rei Príamo a Aquiles, para que ele entregue
o corpo de seu filho Heitor, que tinha sido morto pelo mesmo Aquiles. Isso está
descrito na Ilíada. Segue o trecho que eu queria compartilhar:
Mercúrio se ala; Príamo se apeia,
Deixando fora a Ideu corcéis e mulas
Seguiu direito; achou de Jove o aluno
Dentro sentado, à parte os sócios, menos
Alcimo e Automedon, ramos de Marte,
Que à mesa diligentes o serviam,
Onde satisfizera a sede e a fome.
Não visto passa o corajoso velho,
Até que prosternado, humilde beija
A mão terrível que imolou seus filhos.
As informações são
diretas: o velho rei desce do cavalo, entra na tenda, ignora os servos de
Aquiles, se curva e ajoelhado, olha para o homem que tinha acabado de arrastar
seu filho amarrados pelos pés num carro, pega essas mesmas mãos e as beija.
Ele, o corajoso rei, está humilde diante do assassino de seu filho. Isso tudo
explicitado em apenas um verso. Ainda faltam pelo menos um seis dessa conversa.
Na maior parte do tempo, a literatura ocidental escolheu esse caminho de extrema descrição, abandonando a economia que vem dos textos orientais. Poucos espaços nos são deixados para que completemo-los com nossa imaginação. Tudo está ali, ao alcance dos olhos e da mente que segue descansada rumo a conclusão da cena.
Agora, atente para o trecho que está em João 11.32-34.
Na maior parte do tempo, a literatura ocidental escolheu esse caminho de extrema descrição, abandonando a economia que vem dos textos orientais. Poucos espaços nos são deixados para que completemo-los com nossa imaginação. Tudo está ali, ao alcance dos olhos e da mente que segue descansada rumo a conclusão da cena.
Agora, atente para o trecho que está em João 11.32-34.
“Quando Maria chegou ao lugar onde estava Jesus, ao vê-lo, lançou-se-lhe aos pés, dizendo: Senhor, se estiveras aqui, meu irmão não teria morrido. Jesus vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se. E perguntou: Onde o sepultastes? Eles lhe responderam: Senhor, vem e vê!
Depois disso, a
passagem que eu acho a mais emblemática de toda a Bíblia. Ela é composta de
apenas uma frase com duas palavras. Nem Miles Davis seria tão sucinto no seu
improviso. Nem Hemingway conseguiria escrever
esse conto.
A frase que completa o texto é essa:
JESUS CHOROU.
Aprendeu Hemingway?
É notório que nenhuma
outra religião apresenta um Deus que se torna uma de suas criaturas. Todos os
deuses gregos se mantêm distantes da ralé humana e tem preconceitos com relação
aos que vivem abaixo do Olimpo. Aparentemente todas as religiões, eu disse
TODAS, apresentam deuses que deixam bem clara a distinção entre humano-deus. E
nenhuma apresenta um Deus que chora. O peso dessa passagem, tão simples é
extremamente atordoante.
Um deus que chora como um humano.
Seria de saudade? Seria dor? Seria de pena? Seria um sentimento de perda, não apontando para o mundo dos vivos, mas para o mundo dos mortos? Seria a aflição de saber que seu amigo Lázaro estaria agora num lugar intransponível? Seria um fingimento? Afinal, deuses e os anões azuis que fundaram a tropa dos Lanternas Verdes não sentem emoções. Seria o sentimento de ter se atrasado e não ter visto seu amigo partir? O que realmente passou pela cabeça de Jesus ao chorar? Ela já tinha chorado daquela maneira? Reza Aslan escreveu que Jesus literalmente explodiu a compreensão do mundo antigo no que se refere a mitologias, pois nunca em nenhum momento da história teológica um Deus ressuscita a troco de nada, sem receber pagamento ou ofertas por isso. E muito menos morre e volta em “carne e osso”.
O que Jesus, criador de todo pensamento estava pensando?
Nem mesmo usando toda nossa imaginação conseguiremos saber.
Um deus que chora como um humano.
Seria de saudade? Seria dor? Seria de pena? Seria um sentimento de perda, não apontando para o mundo dos vivos, mas para o mundo dos mortos? Seria a aflição de saber que seu amigo Lázaro estaria agora num lugar intransponível? Seria um fingimento? Afinal, deuses e os anões azuis que fundaram a tropa dos Lanternas Verdes não sentem emoções. Seria o sentimento de ter se atrasado e não ter visto seu amigo partir? O que realmente passou pela cabeça de Jesus ao chorar? Ela já tinha chorado daquela maneira? Reza Aslan escreveu que Jesus literalmente explodiu a compreensão do mundo antigo no que se refere a mitologias, pois nunca em nenhum momento da história teológica um Deus ressuscita a troco de nada, sem receber pagamento ou ofertas por isso. E muito menos morre e volta em “carne e osso”.
O que Jesus, criador de todo pensamento estava pensando?
Nem mesmo usando toda nossa imaginação conseguiremos saber.
Eis ai a potencia
desse texto. E a nossa impotência perante tal rede de significação.
1 Comments:
Muito bacana, adorei!
Tem um livro muito interessante que adota uma perspectiva semelhante, "Deus-uma biografia", do filólogo Jack Miles. É bem legal porque ele analisa o Antigo Testamento de um ponto de vista literário, preocupado com a construção do "personagem" Deus. É muito rico porque foge a essas polêmicas estéreis que você mencionou - que, no fundo, não têm nenhum valor intelectual. Aliás, ando há um bom tempo para escrever um texto no meu blog sobre a Bíblia e os historiadores.
Agora, só você para usar os guardiões como parte do argumento!rs
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