Growing up!

Aqui você encontrará meus delirios socráticos, minhas opiniões sobre assuntos diversos e obvio, um pouco da minha percepção de mundo. Tiago de Souza

quarta-feira, abril 16, 2014

Dinossauro na Arca não pode Noé...



Depois que a poeira baixou, me senti confortável pra escrever algo sobre a polêmica em torno do filme “Noé”. De inicio, ao ver o trailer quis muito assistir. Muito mesmo. Sempre achei que a Bíblia possui histórias incríveis e que mereciam sair das páginas (e da minha imaginação) para as telas do cinema. É justo. É necessário, num mundo onde os ícones estão sumindo e dando lugar aos meros signos. Entretanto, percebi uma enxurrada (que ironia...) de críticas e inúmeras manifestações de repúdio ao filme por conta de uma suposta carga herética e pela óbvia “falta de respeito com o texto bíblico”. Não estou aqui defendendo o filme. Estou apenas defendendo a validade do discurso exteriorizado pela obra de Arte. Heidegger escreve que ninguém pensa  na maneira que uma parede é feita ela está lá e pronto, mas apenas a obra de arte nos faz refletir sobre seus materiais, ou seja, do quê ela é feita. Nisso, podemos entender que esse filme superou as expectativas.

Nesse texto vou dizer o que eu acho disso tudo.

Em primeiro lugar, o texto bíblico, como escreveu Orígenes, é uma verdadeira “tapeçaria de significados”. Não dá pra ler num único sentido e pronto. Cada história, cada conto, cada situação, cada ambiente possui inúmeros vieses que podem ser analisados e entendidos a partir de determinado contexto histórico, teológico e metafórico. Não dá pra ser linear. Não dá pra ser horizontal. O texto bíblico é incrivelmente complexo e nenhum outro texto da antiguidade se assemelha ao tipo de construção textual e simbólica que a Bíblia possui. As histórias transbordam veracidade (tirando algumas fantásticas como Jonas...) e uma intensa carga emocional (É só ler Jeremias...). Não tem Homero, não tem Livro dos Mortos, não tem Eneida que se aproxime: nada se aproxima do peso das palavras que formam essas histórias escritas por pessoas da idade do bronze. A cena do pai de Heitor chorando aos pés de Aquiles pedindo o corpo do filho pra ser enterrado parece ter sido escrito por uma criança quando lemos o trecho do reencontro de José e de seus irmãos. Mas o problema está justamente em nós. O texto bíblico é tão simples, tão direto, tão obvio em sua complexidade (conseguiram acompanhar a tortuosidade da frase?) que nós não sabemos lidar com ele. Estamos completamente vacinados contra a carga dramática do texto bíblico. Não nos emocionamos quando lemos que “Jesus chorou”, muito menos quando lemos sobre o medo de Caim depois de matar seu irmão Abel. Nós somos insensíveis a tudo isso. Choramos assistindo um filme pipoca de Hollywood, mas não movemos um músculo do rosto quando analisamos a cena em que o profeta Elias está sozinho, em pé, atordoado, pensando no que vai fazer porque deitado numa cama, imóvel, morto, está o filho único de uma mulher que ao que parece tinha tido um aneurisma enquanto trabalhava com o pai. A mulher era uma grande amiga de Elias e ele para recompensá-la orou a Deus para que ela pudesse ter filhos, mesmo sendo de idade avançada. E agora que o filho veio... Ele morreu. A Bíblia nos foge porque nem sempre a interpretação que nós damos é a mais correta: é só perceber a tragédia que são nossas interpretações do livro de Apocalipse. E não venha me dizer que é o Espírito Santo que interpreta, porque o se depender das abobrinhas que as pessoas andam falando por ai, o Espírito Santo anda passando longe de algumas escrivaninhas...
Permita-me repetir um trecho do meu ultimo texto aqui no blog. “Meu irmão apareceu com um livro chamado “A Arte da Narrativa Bíblica” de Robert Altler que me fez parar pra pensar. No livro, ele apresenta uma maneira de analisar a Bíblia que chega a ser tola de tão simples: ao invés de apenas tentar desacreditá-la, que tal analisar os textos hebraicos e cristãos com as mesmas ferramentas e o mesmo olhar que aplicamos a textos consagrados da literatura ocidental como Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Milton e outros? Porque somente falamos que “fulano não escreveu o livro tal”, ou “os padres safados incluíram coisas na Bíblia que não estavam lá” ou outras teorias que dominaram o imaginário e os estudos bíblicos a partir do século XIX com as chamadas “Alta Crítica” e “Baixa Crítica”. Muita gente passou a abandonar a Fé e num simplismo idiotizante, a incentivar a postura de menosprezo ao texto bíblico. Altler não cai no simplismo de tratar o texto de maneira ingênua, como se ele fosse uma única estrutura, mas aplica uma crítica soberba ao texto. O trecho que me chamou a atenção é o que ele diz que com pouquíssimas “peças” textuais, os escritores da Bíblia conseguiam impactar o leitor, fazê-lo pensar e repensar o texto, buscando com as parcas informações recebidas pelo texto bíblico, utilizar referencias anteriormente lidas para construir cenários, características dos personagens e até mesmo completar a história com sua própria imaginação”.

Falemos de Noé.
A história descrita na Bíblia pode ser dividida em 3 partes muito simples:
a)      Noé era bom e por isso será salvo. Ele recebe uma missão de Deus: fazer a arca pra salvar sua família e os animais;
b)      Noé completa a arca, o dilúvio cai, geral morre e ele se salva;
c)       Noé e sua família saem da arca e a partir dali irão repovoar a terra.

Agora pensa como Hollywood poderia fazer um filme só com isso? Óbvio que existem filmes cujo argumento é bem menor que o da história de Noé, mas abusam de tiroteios, de mistérios, de ação, de intrigas... Mas a história de Noé não tem nada disso. Ela é simples. Dura. Cinza. Seca. Óbvio que quando ela fosse filmada, o enredo teia que ser mais... digamos, atraente. E é ai que os problemas começaram. Vou apontar as “heresias” do filme:
a)      Deus não fala com Noé: ele tem sonhos e visões;
b)      Noé utiliza entorpecentes para ter visões (o Heinseberg do Noé é seu bisavô Matusalém [Quem assistiu Breaking Bad entendeu essa...]);
c)       A arca é construída com a ajuda dos Guardiões, que seriam os “anjos caídos”;
d)      Tubalcaim, o pai dos ferreiros, tenta intimidar Noé e consequentemente quando a chuva cai, tenta de todas as maneiras entrar na arca;
e)      Noé vira um psicótico dentro da Arca e suas ideias a respeito da miséria que envolve a raça humana fariam Schopenhauer adicioná-lo no Facebook;
f)       Ao contar sobre a Criação, Noé mistura-a com a Teoria da Evolução (esse tinha tudo pra ser o crime mais grave...);
g)      A maior parte do enredo foge do texto bíblico: Os filhos de Noé não tem esposas, a mulher de Noé indiretamente sacaneia ele, um dos animais é morto dentro da arca (e automaticamente extinto), a cena de Noé chapadão de vinho não é a mesma que é descrita na Bíblia, o arco íris acontece de um jeito diferente do que está descrito na Bíblia, os tefilins utilizados pelos judeus são originários da pele da serpente do Pecado Original  e novamente, Deus não fala uma palavra com Noé.
h)      O Deus do filme é mal e perverso.

Bom, se eu esqueci algum dos erros do filme, perdoem-me, mas a essência é essa dai. A questão é: o filme foi feito claramente BASEADO na Bíblia e não LITERALMENTE na Bíblia, porque, cá entre nós...  Bíblia não empolga nem vende ingresso. É só ir à sua igreja durante os cultos no meio da semana e na EBD, ou então perguntar para os adolescentes que ouvem Thalles e fazem selfies no Facebook durante o culto se eles sabem aonde está o livro de Sofonias ou quem foi Jefté. O mais engraçado é que os cristãos acreditam em 3 reis magos, na via dolorosa, que Paulo morreu decapitado e Pedro  crucificado de cabeça pra baixo, que João foi jogado num caldeirão fervente e não percebem que tudo isso é fruto de uma TRADIÇÃO, e nada disso está na Bíblia. Claro, o filme não poderia se ater as bases da história judaica. O diretor apenas utilizou o que poderia ser interessante e inseriu diversos elementos para prender a atenção do espectador, dar uma boa dinâmica a história e claro, criar polêmica com os “mimimis” dos cristãos. 

 Com relação as heresias, vou apenas  apontar duas coisas.
a)      Eu sinceramente nunca ouvi Deus. Nem nunca o vi. Se você já... que bom pra você, mas creio que Deus pode falar de outras maneiras... Ver Deus aparecendo na beira da minha cama não é lá um dos meus maiores desejos, mas creio que ele fala comigo todo o dia, desde uma linda paisagem até aquela voz que é minha consciência, mas que me leva pra o lugar certo (embora Nietzsche discorde de mim...). Inclusive ele falou comigo durante o filme Noé, mostrando que o amor supera o ódio. Pelo menos em teoria.
b)      Essa ideia de “seres do além construírem algo” vem de uma antiga lenda judaica em que Salomão (aquele rei famoso...) constrói o templo de Jerusalém utilizando um anel que controla demônios. Esse anel foi dado a ele por Miguel e com isso, Salomão captura Asmodeus que o ensina os segredos de partir pedras sem ter que utilizar metais para isso. São esses “demônios” que na história (eu disse hISTÓRIA) constroem o templo e conta-a tradição que, durante a construção do fabuloso templo, não se escutava qualquer ruído embora ali a pedra fosse trabalhada profusamente... Logo, essa “heresia” não foi uma criação do diretor nem do roteirista do filme, mas é algo que a muito tempo atrás já existia como lenda.
c)       Sobre o Noé psicótico... Leiam a história de Jefté. Ponto. Apenas isso.

 O texto não nos dá ferramentas completas para saber o que Noé pensava e como foram os 40 dias dentro da arca, como a família dele entendeu a sua missão... Será que ninguém atrapalhou a construção da Arca? Será q Noé não teve que se impor perante a família e os seus iguais pra poder terminar o serviço? Nós temos apenas conjecturas direcionadas por uma leitura do texto. Nós é que montamos uma visão sobre isso e o filme é uma tentativa de pensar em como poderia ter sido. Não é necessário pensar se aquilo é real ou não. Nós NUNCA IREMOS SABER. Quero deixar bem claro que não quero espiritualizar nada, sei que o correto entendimento da Bíblia não vem apenas (eu disse APENAS) do estudo, mas sim de uma iluminação proveniente do Pai das Luzes, mas obvio que o significado que damos a um texto depende do que nós entendemos, do que vivenciamos, de nosso contexto de vida, de nossos valores... A parte da criação, em que Noé conta como o mundo foi formado pra mim é a melhor parte do filme, pois mostra como Deus pode realmente fazer milagres de maneira a confrontar a NOSSA ideia do que seja um milagre. Thomas Hobbes rejeitava totalmente a ideia de que algo fora da normalidade pudesse acontecer, mas... e se Deus utilizasse justamente a normalidade para subvertê-la? Não quero criar polêmicas, mas a maneira que o filme mostrou como o mundo surgiu foi emocionante e refletiu muito do que o Deus que eu acredito que exista trabalha: um Deus que não precisa empenar a realidade para mostrar que ele tem o controle de tudo. Ele é a própria realidade, tudo está n´Ele. Seria muito fácil ser aquele Deus que os gregos gostavam cheio de trovões e de “poderzão”, mas me parece que Deus não trabalha assim. Ele pode tanto alterar a rotação de uma galáxia quando bem quiser, mas pra isso, utilizar uma supernova pra que o efeito desejado seja alcançado. Deus não precisa berrar no meu ouvido (embora as vezes eu acho que seria bem melhor...) pra me falar alguma coisa. A questão é: eu realmente estou sensível para ouvir o que Ele quer dizer da maneira que Ele quer dizer? O Deus do filme não é mal. Nós é que somos. O Deus do filme nos dá escolhas. Nós é que optamos por trilha-las.

No livro “O fim do poder” o escritor Moisés Naím aponta que estamos passando pela Revolução do “Mais”: temos mais opções, mais vontade de mudar de vida, mais acesso a informação... Com o Facebook todos falam ao mesmo tempo e todos sabem opinar sobre tudo, mas... Somos oceanos de conhecimento com uma polegada de profundidade. Parece-me que temos em contraponto a esse MAIS, menos reflexão, menos paciência, menos noção do que é ARTE do que é VIDA. A arte não é uma imitatio socrática (para Hegel, a simples imitação produz o tédio... recado que anda sendo esquecido por nossos aspirantes a artistas), ela pode nos dar um recado de algo que não foi visto nem pensado. Nos falta sensibilidade pra apreciar um produto e separamos o que vemos do que somos.

 Nos sobra espírito de Cruzadas e nos falta calar a boca e ouvir o outro. Mesmo discordando dele.

sábado, dezembro 14, 2013

Menos é mais.



Papel de parede 'Jesus chorou'

 

 

 

 

 

 

 

 

 Li um dia dessa uma matéria que está no site: Literatortura.com.

“Segundo a “lenda”, propuseram a Hemingway escrever um conto que não ultrapassasse 6 palavras. E ele assim o fez”.  O conto é esse aqui:

Vende-se: sapatos de bebê, sem uso.

“Você imagina tudo que veio antes, o casal, a gravidez da mulher – quem sabe aquela tão esperada, desejada? -, a possível preocupação com o dinheiro – no fim eles vendem o sapato, não apenas jogam fora -, a felicidade de pensar na criança, todos os meses de gestação, o nascimento e, por fim, a morte. O bebê não teve nem a chance de usar o enxoval. E o peso da tragédia familiar é atirado em nós sem um mínimo de preparo”.

Pensei sobre isso e cheguei a conclusão que existe outro conto, mais conciso ainda, tem um peso muito maior do que esse e nos dá um campo imaginativo inesgotável.
Permita-me apresentá-lo.

Meu irmão apareceu com um livro chamado “A Arte da Narrativa Bíblica” de Robert Altler que me fez parar pra pensar. No livro, ele apresenta uma maneira de analisar a Bíblia que chega a ser tola de tão simples: ao invés de apenas tentar desacreditá-la, que tal analisar os textos hebraicos e cristãos com as mesmas ferramentas e o mesmo olhar que aplicamos a textos consagrados da literatura ocidental como Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Milton e outros? Porque somente falamos que “fulano não escreveu o livro tal”, ou “os padres safados incluíram coisas na Bíblia que não estavam lá” ou outras teorias que dominaram o imaginário e os estudos bíblicos a partir do século XIX com as chamadas “Alta Crítica” e “Baixa Crítica”. Muita gente passou a abandonar a Fé e num simplismo idiotizante, a incentivar a postura de menosprezo ao texto bíblico.
Altler não cai no simplismo de tratar o texto de maneira ingênua, como se ele fosse uma única estrutura, mas aplica uma crítica soberba ao texto. O trecho que me chamou a atenção é o que ele diz que com pouquíssimas “peças” textuais, os escritores da Bíblia conseguiam impactar o leitor, fazê-lo pensar e repensar o texto, buscando com as parcas informações recebidas pelo texto bíblico, utilizar referencias anteriormente lidas para construir cenários, características dos personagens e até mesmo completar a história com sua própria imaginação. Um exemplo rápido: Davi é o personagem com o maior número de informações dadas pelo texto bíblico (pelo menos quatro livros são utilizados pra contar sua história), mas até a morte de seu filho, fruto de um adultério com Bestseba, a Bíblia não nos informa nada sobre seus pensamentos mais sutis, suas aflições peculiares, suas vontades absolutas e seu modus operandi intimo.  Traduzindo: Davi está a toa em casa, enquanto seu exército luta. Por quê? Não sabemos ao certo. Ele está no seu palácio e de uma sacada (será?) vê uma mulher tomando banho. Ele a deseja, manda buscá-la e “manda ver”. A mulher fica grávida. Davi orquestra um plano pra matar o marido dela. Consegue. Depois manda trazê-la ao palácio, só que o pecado é descoberto. Davi chora, se arrepende, mas a sentença de Deus é que seu filho morra.


“E o SENHOR feriu a criança que a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente. Buscou Davi a Deus pela criança; jejuou Davi e, vindo, passou a noite prostrado em terra”.

Até aquele momento, Davi é uma máquina, ele apenas reage as circunstâncias como um “Schwarzenegger”. Apenas no episódio da morte de seu filho é que realmente entramos na cabeça de Davi, ainda assim de forma não totalmente explicitada pelo texto. O autor mostra um Davi se acabando em lágrimas, mas é econômico em sua descrição da dor.
O autor compara isso com outro episódio emblemático da literatura ocidental: a cena extremamente tocante do pedido do rei Príamo a Aquiles, para que ele entregue o corpo de seu filho Heitor, que tinha sido morto pelo mesmo Aquiles. Isso está descrito na Ilíada. Segue o trecho que eu queria compartilhar:

Mercúrio se ala; Príamo se apeia,
Deixando fora a Ideu corcéis e mulas
Seguiu direito; achou de Jove o aluno
Dentro sentado, à parte os sócios, menos
Alcimo e Automedon, ramos de Marte,
Que à mesa diligentes o serviam,
Onde satisfizera a sede e a fome.
Não visto passa o corajoso velho,
Até que prosternado, humilde beija
A mão terrível que imolou seus filhos.

As informações são diretas: o velho rei desce do cavalo, entra na tenda, ignora os servos de Aquiles, se curva e ajoelhado, olha para o homem que tinha acabado de arrastar seu filho amarrados pelos pés num carro, pega essas mesmas mãos e as beija. Ele, o corajoso rei, está humilde diante do assassino de seu filho. Isso tudo explicitado em apenas um verso. Ainda faltam pelo menos um seis dessa conversa.
Na maior parte do tempo, a literatura ocidental escolheu esse caminho de extrema descrição, abandonando a economia que vem dos textos orientais. Poucos espaços nos são deixados para que completemo-los com nossa imaginação. Tudo está ali, ao alcance dos olhos e da mente que segue descansada rumo a conclusão da cena.

Agora, atente para o trecho que está em João 11.32-34.

“Quando Maria chegou ao lugar onde estava Jesus, ao vê-lo, lançou-se-lhe aos pés, dizendo: Senhor, se estiveras aqui, meu irmão não teria morrido. Jesus vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se. E perguntou: Onde o sepultastes? Eles lhe responderam: Senhor, vem e vê!

Depois disso, a passagem que eu acho a mais emblemática de toda a Bíblia. Ela é composta de apenas uma frase com duas palavras. Nem Miles Davis seria tão sucinto no seu improviso. Nem Hemingway conseguiria escrever esse conto. 
A frase que completa o texto é essa:

JESUS CHOROU.

Aprendeu Hemingway? 
É notório que nenhuma outra religião apresenta um Deus que se torna uma de suas criaturas. Todos os deuses gregos se mantêm distantes da ralé humana e tem preconceitos com relação aos que vivem abaixo do Olimpo. Aparentemente todas as religiões, eu disse TODAS, apresentam deuses que deixam bem clara a distinção entre humano-deus. E nenhuma apresenta um Deus que chora. O peso dessa passagem, tão simples é extremamente atordoante.
Um deus que chora como um humano.
Seria de saudade? Seria dor? Seria de pena? Seria um sentimento de perda, não apontando para o mundo dos vivos, mas para o mundo dos mortos? Seria a aflição de saber que seu amigo Lázaro estaria agora num lugar intransponível? Seria um fingimento? Afinal, deuses e os anões azuis que fundaram a tropa dos Lanternas Verdes não sentem emoções. Seria o sentimento de ter se atrasado e não ter visto seu amigo partir? O que realmente passou pela cabeça de Jesus ao chorar? Ela já tinha chorado daquela maneira? Reza Aslan escreveu que Jesus literalmente explodiu a compreensão do mundo antigo no que se refere a mitologias, pois nunca em nenhum momento da história teológica um Deus ressuscita a troco de nada, sem receber pagamento ou ofertas por isso. E muito menos morre e volta em “carne e osso”.
O que Jesus, criador de todo pensamento estava pensando?

Nem mesmo usando toda nossa imaginação conseguiremos saber.
Eis ai a potencia desse texto. E a nossa impotência perante tal rede de significação.

sábado, novembro 16, 2013

Acisum



 


Esse texto surgiu como catarse de certos pensamentos que me “surgiram” durante uma reflexão trazida pelo Pastor André Santanna. Na ocasião, ele falou sobre como a Música pode servir de metáfora extremamente poética na busca por respostas à questões não simplesmente teológicas, mas profundamente existenciais e, portanto, urgentes. É de Blaise Pascal o texto em que o ser humano, de forma indutiva, é comparado a um indivíduo que, condenado a morte, prefere passar as suas ultimas horas jogando cartas do que buscando descobrir o porquê de estar prestes a morrer. Durante a exposição do tema pelo pastor-poeta, um texto de Saramago foi citado como um exemplo incrível do poder místico da Música e a partir dele, alguns outros exemplos foram surgindo linearmente na minha cabeça. Anotei tudo no celular (viva a tecnologia) e, depois de muito ruminados, esses fragmentos vieram a luz no texto que você está prestes a ler. Perguntei-me na ocasião se existe Música de morte e se existe Música de Vida... Não pensei em termos de metáfora, pensei literalmente. A Música pode ser algo mais do que apenas... Música? Bom, dependendo do que você pode achar que seja Música, para algumas perguntas a resposta é Sim. Para as outras, um Não. Para outras... Confesso que não sei.


Li um dia desses. Não lembro onde. Estudos com ondas sonoras são feitos para MATAR pequenos animais, como cupins. Isso mesmo. A ciência busca maneiras objetivas de identificar frequências sonoras capazes de interromper o ataque de cupins da espécie Cryptotermes sp. (Isoptera: Kalotermitidae) em obras de arte e patrimônio em madeira, com base na alteração do seu comportamento natural quando expostos a um ambiente sujeito às variações impostas pelas ondas sonoras. Ah! E existem experimentos que buscam descobrir frequências sonoras que seriam capazes de literalmente explodir objetos. Quem nunca viu uma imagem em que um cantor quebra uma taça de cristal ao atingir uma frequência sonora específica com seu canto? Pois é. Estão querendo descobrir que frequências poderiam romper determinados tipos de materiais e até MATAR um ser humano. É só caçar no Google: arma sônica.
O simples SOM pode matar. Mas... E a Música? Será que dá pra matar com ela? Dois rápidos exemplos.


a) Permita-me agora apresentar você ao compositor Aleksandr Scriábin, que viveu durante o século XIX e morreu no inicio do XX. Leia e tire suas conclusões:

“Influenciado pelo espiritualismo teosófico, ele concebeu uma linguagem harmônica que vibrava em torno de um acorde místico de seis notas; sua obra magna inacabada, Mysterium, programada para estrear no sopé do Himalaia, produziria nada mais nada menos do que a aniquilação do universo, da qual homens e mulheres reemergiriam como almas astrais, libertadas da diferença sexual e de outras limitações corpóreas”. 

b) Na Bíblia (óbvio que eu chegaria nela) temos mais um exemplo de como a música pode ser utilizada para propósitos distintos. Segundo os musicólogos, o primeiro jingle foi feito por J. S. Bach e era uma propaganda para a venda de café. Discordo. O primeiro jingle, e entendam jingle como “música feita para efeitos propagandísticos”, foi feito por um cara chamado Lameque. Quando ele matou dois homens (alguns teólogos mais afoitos acreditam que ele pode ter matado o próprio Caim... Brrrrr) ele se alegrou com seu pecado e até fez uma canção que eu chamo de “Rap do Matador”:

“Escutem-me; mulheres de Lameque e marquem bem o que eu digo: Matei um homem porque me feriu, matei um moço porque me machucou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

Ou seja, Músicas de Morte...
E o contrário?
a) No livro Intermitências da Morte o escritor José Saramago, abusando de sua prosa por vezes “alucinógena”, escreve que num determinado dia “Ninguém morreu”. A Morte resolveu tirar férias. O mundo virou um caos. Óbvio que de inicio as pessoas gostaram da ideia, mas imagine a situação de uma pessoa que se acidenta, se quebra toda, mas TODA mesmo, mas não pode morrer porque a Morte resolveu tirar férias. A Morte, cansada de tanta reclamação resolve a questão com um método simples: ela iria avisar quem iria morrer com uma carta dias antes do óbito. Ela mesma iria escrever as cartas e endereçá-las aos “sortudos” que teriam tempo para se preparar para o triste porvir. Mas... Uma das cartas enviadas do escritório da morte acaba voltando. A Morte fica ao mesmo tempo atônita e curiosa e depois de múltiplas tentativas de envio e consequentes retornos do envelope, ela decide investigar. Não quero contar maiores detalhes (vai que te convenço a ler o livro?), mas apenas quero adiantar que a pessoa que se “recusava a morrer” era um violoncelista. Posso adiantar só mais uma coisa? A música desse obscuro intérprete foi divina o suficiente para fazer a Morte mais uma vez tirar férias.  

b) Davi (aquele, que matou Golias) usava sua habilidade com a harpa para fins místicos e claramente terapêuticos. De inicio, ele conseguia suas “gigs” porque era um excelente músico e pelo visto, tinha uma inteligência interpessoal excepcional, pois sua fama chegou até o palácio do rei (na ápoca um cara chamado Saul). Isso seria parelho, permita-me a comparação, se suas habilidades de trabalho, caro leitor, chegassem aos ouvidos da presidente Dilma. Isso mostra o quanto o potencial de Davi era assombroso porque, se hoje em dia tá difícil até mesmo fazer com que nosso “trabalho” chegue em determinados músicos que as vezes moram a quadras de nossa casa, que dirá chegar aos ouvidos de líderes de Estado. Ao ser levado para a corte do rei Saul, que ao que parece sofria de sérios distúrbios psicológicos decorrentes de uma opressão de caráter espiritual, usou a música para trazer paz e vida para o rei.
Ou seja, Músicas de vida...

Entretanto, pensando de maneira fenomenológica, cada indivíduo apreende e organiza de maneira bem específica e idiossincrática, toda uma rede de significados e simbolismos relativos a um determinado objeto. Eu posso ouvir uma música, ver uma foto ou até mesmo estar diante de uma determinada sequencia de acordes, e a partir desse “algo” extrair um significado que fatalmente será diferente do seu. Aquela música que antecede o plantão jornalístico da Rede Globo assusta muita gente, pois ela antecede a uma possível noticia de tragédia e afins, mas para a pessoa que a criou, o simples fato de ouvi-la antes do anuncio de uma catástrofe ou de uma noticia exclusiva, pode trazer uma sensação de orgulho profissional e satisfação.  Na mesma história de Davi, uma pequena canção foi suficiente para acabar com a relação entre ele e o rei. Ao voltar de uma batalha sendo carregado nos ombros do povo, Davi ouviu o seguinte “funk ostentação”:

“Saul matou milhares
Mas Davi matou dezenas de milhares!”.
(Tum pá pá Tum Tum pá tuguduuum)

Quando Saul ouviu isso, ele buscou de todas as maneiras matar Davi. Por causa do significado dado a uma pequena canção, e que nem era tão boa assim. Dito isso, existe realmente Música de Vida e Música de Morte? A música por si só é capaz de fazer alguma coisa ou somos nós que a partir dela podemos sentir coisas boas ou ruins? John Dewey no livro A Arte como Experiência rejeita a concepção de arte que a espiritualiza, retirando-a da ligação com os objetos da experiência concreta, ou seja, todas as teorias que isolam a arte de sua apreciação, colocando-as em um campo próprio, desvinculado das outras modalidades do experimentar, traduzindo para um leitor mais desligado, somos nós e nossas ferramentas culturais que damos significado a Arte. Nas palavras de William James, um pensador pragmático: 

“O ISSO (da Arte) é dela mesma, porém, o O QUÊ depende do QUAL e O QUAL depende de NÓS”

Isso não quer dizer que eu estou “frio” ou “cético” com relação a musa de inúmeros artistas, mas significa que tenho pensado sobre o assunto e cada vez mais percebo que a Música se aproxima do que Stravinsky dizia: ela não diz absolutamente nada - somos nós que orientamos e definimos o impacto que ela terá sobre nós. Mesmo que a Música nos invada, nos assalte, nos faça chorar, bater em algo, rodopiar como um dervixe ou nos acalme, isso só acontece se, como disse aquele “judeu estranho”, nós abrirmos a porta. Ultimamente com relação a isso tenho tido uma postura que Max Weber no texto A Ciência como vocação chamou de “Desencantamento com o Mundo”, ou seja, ao invés de dar explicações mágicas, acabo pondo os pés no chão e buscando dentro de mim (nós) mesmo (s) a significância do que pode realmente não ter significado. Mas, deixe-me esclarecer uma coisa. Não estou tratando aqui de questões de FÉ. Como já expliquei antes, Fenomenologia... cada um levanta a bandeira que quiser. Acredito sim, que a Música pode ser uma ferramenta para inúmeros contextos espirituais, e entendo que na atual situação do Cristianismo, a ela está sendo maltratada e até mesmo usada de forma incorreta, obtusa e burra, ao mesmo tempo que cantores e movimentos são feitichizados pelos "fieis". Deixo por hora, minhas convicções religiosas para um outro momento e quero apenas falar de forma, digamos, imparcial. Volta no Weber. Se liga na prosa do malandro:

“Quem continua ainda a acreditar - salvo algumas crianças grandes que encontramos justamente entre os especialistas - que os conhecimentos astronômicos, biológicos, físicos ou químicos (e eu, na minha humilde interpretação e para a utilização do trecho a nosso favor, acrescento aqui, os conhecimentos artísticos) poderiam ensinar-nos algo a propósito do sentido do mundo ou poderiam ajudar-nos a encontrar sinais de tal sentido, se é que ele existe?”.

Mas, eis que a estocada final Weberiana chega como uma brisa:

“O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo "desencantamento do mundo" levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes. (...) A quem não é capaz de suportar virilmente esse destino de nossa época, só cabe dar o conselho seguinte: volta em silêncio, sem dar a teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas Igrejas. Elas não tornarão penoso o retorno. De uma ou de outra maneira, quem retorna será inevitavelmente compelido a fazer o "sacrifício do intelecto".


Agora, quer descontruir tudo o que eu escrevi?
Pega aquela Bíblia (não disse que o momento ia chegar?) que está na estante da sua casa e jaz aberta a mil anos no Salmo 91 e procura o texto que está em Mateus 26,30 e Marcos 14,26. A situação é a seguinte: Jesus tinha acabado de fazer sua ultima refeição aqui na terra e estava indo para os instantes que antecediam sua prisão e consequente morte. Ele iria para o Monte das Oliveiras e ali seria preso (assista o filme “Paixão de Cristo” do Mel Gibson: essa cena é a primeira do filme: a que Jesus está orando no monte, momentos antes de sua prisão). Ele sabia de tudo o que aconteceria (ao contrario do que Saramago dizia...). Lembra do texto de Pascal que eu citei lá no começo do texto? Pois bem.  Ao invés de “jogar cartas”, Jesus fez o seguinte:

Tendo cantado um hino, saíram para os montes das Oliveiras.

Rapaz... ele tava pra bater as botas e CANTAVA! Mas que hino seria esse? Que Música fantástica seria essa que antecederia a basilar modificação do mundo espiritual e material? Ela seria uma beracha (bênção). O hino, que Mateus e Marcos dizem que Jesus e os discípulos cantaram no final da ceia são os chamados “Salmos do Hallel” (Hallel significa “Louvor”), ou seja, os Salmos 113-118, cuja recitação encerrava a ceia pascal.
Tá ai, caro leitor. Já dizia Fritjof Capra que os orientais são um povo de contrastes e suas práticas são recheadas de conceitos que “crescem ao se anular”. Temos um paradoxo: uma Canção que antecedia a MORTE, mas que no fim das contas, nos deu a VIDA.

Cabe a você querer cantá-la ou não.