Growing up!

Aqui você encontrará meus delirios socráticos, minhas opiniões sobre assuntos diversos e obvio, um pouco da minha percepção de mundo. Tiago de Souza

quarta-feira, abril 16, 2014

Dinossauro na Arca não pode Noé...



Depois que a poeira baixou, me senti confortável pra escrever algo sobre a polêmica em torno do filme “Noé”. De inicio, ao ver o trailer quis muito assistir. Muito mesmo. Sempre achei que a Bíblia possui histórias incríveis e que mereciam sair das páginas (e da minha imaginação) para as telas do cinema. É justo. É necessário, num mundo onde os ícones estão sumindo e dando lugar aos meros signos. Entretanto, percebi uma enxurrada (que ironia...) de críticas e inúmeras manifestações de repúdio ao filme por conta de uma suposta carga herética e pela óbvia “falta de respeito com o texto bíblico”. Não estou aqui defendendo o filme. Estou apenas defendendo a validade do discurso exteriorizado pela obra de Arte. Heidegger escreve que ninguém pensa  na maneira que uma parede é feita ela está lá e pronto, mas apenas a obra de arte nos faz refletir sobre seus materiais, ou seja, do quê ela é feita. Nisso, podemos entender que esse filme superou as expectativas.

Nesse texto vou dizer o que eu acho disso tudo.

Em primeiro lugar, o texto bíblico, como escreveu Orígenes, é uma verdadeira “tapeçaria de significados”. Não dá pra ler num único sentido e pronto. Cada história, cada conto, cada situação, cada ambiente possui inúmeros vieses que podem ser analisados e entendidos a partir de determinado contexto histórico, teológico e metafórico. Não dá pra ser linear. Não dá pra ser horizontal. O texto bíblico é incrivelmente complexo e nenhum outro texto da antiguidade se assemelha ao tipo de construção textual e simbólica que a Bíblia possui. As histórias transbordam veracidade (tirando algumas fantásticas como Jonas...) e uma intensa carga emocional (É só ler Jeremias...). Não tem Homero, não tem Livro dos Mortos, não tem Eneida que se aproxime: nada se aproxima do peso das palavras que formam essas histórias escritas por pessoas da idade do bronze. A cena do pai de Heitor chorando aos pés de Aquiles pedindo o corpo do filho pra ser enterrado parece ter sido escrito por uma criança quando lemos o trecho do reencontro de José e de seus irmãos. Mas o problema está justamente em nós. O texto bíblico é tão simples, tão direto, tão obvio em sua complexidade (conseguiram acompanhar a tortuosidade da frase?) que nós não sabemos lidar com ele. Estamos completamente vacinados contra a carga dramática do texto bíblico. Não nos emocionamos quando lemos que “Jesus chorou”, muito menos quando lemos sobre o medo de Caim depois de matar seu irmão Abel. Nós somos insensíveis a tudo isso. Choramos assistindo um filme pipoca de Hollywood, mas não movemos um músculo do rosto quando analisamos a cena em que o profeta Elias está sozinho, em pé, atordoado, pensando no que vai fazer porque deitado numa cama, imóvel, morto, está o filho único de uma mulher que ao que parece tinha tido um aneurisma enquanto trabalhava com o pai. A mulher era uma grande amiga de Elias e ele para recompensá-la orou a Deus para que ela pudesse ter filhos, mesmo sendo de idade avançada. E agora que o filho veio... Ele morreu. A Bíblia nos foge porque nem sempre a interpretação que nós damos é a mais correta: é só perceber a tragédia que são nossas interpretações do livro de Apocalipse. E não venha me dizer que é o Espírito Santo que interpreta, porque o se depender das abobrinhas que as pessoas andam falando por ai, o Espírito Santo anda passando longe de algumas escrivaninhas...
Permita-me repetir um trecho do meu ultimo texto aqui no blog. “Meu irmão apareceu com um livro chamado “A Arte da Narrativa Bíblica” de Robert Altler que me fez parar pra pensar. No livro, ele apresenta uma maneira de analisar a Bíblia que chega a ser tola de tão simples: ao invés de apenas tentar desacreditá-la, que tal analisar os textos hebraicos e cristãos com as mesmas ferramentas e o mesmo olhar que aplicamos a textos consagrados da literatura ocidental como Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Milton e outros? Porque somente falamos que “fulano não escreveu o livro tal”, ou “os padres safados incluíram coisas na Bíblia que não estavam lá” ou outras teorias que dominaram o imaginário e os estudos bíblicos a partir do século XIX com as chamadas “Alta Crítica” e “Baixa Crítica”. Muita gente passou a abandonar a Fé e num simplismo idiotizante, a incentivar a postura de menosprezo ao texto bíblico. Altler não cai no simplismo de tratar o texto de maneira ingênua, como se ele fosse uma única estrutura, mas aplica uma crítica soberba ao texto. O trecho que me chamou a atenção é o que ele diz que com pouquíssimas “peças” textuais, os escritores da Bíblia conseguiam impactar o leitor, fazê-lo pensar e repensar o texto, buscando com as parcas informações recebidas pelo texto bíblico, utilizar referencias anteriormente lidas para construir cenários, características dos personagens e até mesmo completar a história com sua própria imaginação”.

Falemos de Noé.
A história descrita na Bíblia pode ser dividida em 3 partes muito simples:
a)      Noé era bom e por isso será salvo. Ele recebe uma missão de Deus: fazer a arca pra salvar sua família e os animais;
b)      Noé completa a arca, o dilúvio cai, geral morre e ele se salva;
c)       Noé e sua família saem da arca e a partir dali irão repovoar a terra.

Agora pensa como Hollywood poderia fazer um filme só com isso? Óbvio que existem filmes cujo argumento é bem menor que o da história de Noé, mas abusam de tiroteios, de mistérios, de ação, de intrigas... Mas a história de Noé não tem nada disso. Ela é simples. Dura. Cinza. Seca. Óbvio que quando ela fosse filmada, o enredo teia que ser mais... digamos, atraente. E é ai que os problemas começaram. Vou apontar as “heresias” do filme:
a)      Deus não fala com Noé: ele tem sonhos e visões;
b)      Noé utiliza entorpecentes para ter visões (o Heinseberg do Noé é seu bisavô Matusalém [Quem assistiu Breaking Bad entendeu essa...]);
c)       A arca é construída com a ajuda dos Guardiões, que seriam os “anjos caídos”;
d)      Tubalcaim, o pai dos ferreiros, tenta intimidar Noé e consequentemente quando a chuva cai, tenta de todas as maneiras entrar na arca;
e)      Noé vira um psicótico dentro da Arca e suas ideias a respeito da miséria que envolve a raça humana fariam Schopenhauer adicioná-lo no Facebook;
f)       Ao contar sobre a Criação, Noé mistura-a com a Teoria da Evolução (esse tinha tudo pra ser o crime mais grave...);
g)      A maior parte do enredo foge do texto bíblico: Os filhos de Noé não tem esposas, a mulher de Noé indiretamente sacaneia ele, um dos animais é morto dentro da arca (e automaticamente extinto), a cena de Noé chapadão de vinho não é a mesma que é descrita na Bíblia, o arco íris acontece de um jeito diferente do que está descrito na Bíblia, os tefilins utilizados pelos judeus são originários da pele da serpente do Pecado Original  e novamente, Deus não fala uma palavra com Noé.
h)      O Deus do filme é mal e perverso.

Bom, se eu esqueci algum dos erros do filme, perdoem-me, mas a essência é essa dai. A questão é: o filme foi feito claramente BASEADO na Bíblia e não LITERALMENTE na Bíblia, porque, cá entre nós...  Bíblia não empolga nem vende ingresso. É só ir à sua igreja durante os cultos no meio da semana e na EBD, ou então perguntar para os adolescentes que ouvem Thalles e fazem selfies no Facebook durante o culto se eles sabem aonde está o livro de Sofonias ou quem foi Jefté. O mais engraçado é que os cristãos acreditam em 3 reis magos, na via dolorosa, que Paulo morreu decapitado e Pedro  crucificado de cabeça pra baixo, que João foi jogado num caldeirão fervente e não percebem que tudo isso é fruto de uma TRADIÇÃO, e nada disso está na Bíblia. Claro, o filme não poderia se ater as bases da história judaica. O diretor apenas utilizou o que poderia ser interessante e inseriu diversos elementos para prender a atenção do espectador, dar uma boa dinâmica a história e claro, criar polêmica com os “mimimis” dos cristãos. 

 Com relação as heresias, vou apenas  apontar duas coisas.
a)      Eu sinceramente nunca ouvi Deus. Nem nunca o vi. Se você já... que bom pra você, mas creio que Deus pode falar de outras maneiras... Ver Deus aparecendo na beira da minha cama não é lá um dos meus maiores desejos, mas creio que ele fala comigo todo o dia, desde uma linda paisagem até aquela voz que é minha consciência, mas que me leva pra o lugar certo (embora Nietzsche discorde de mim...). Inclusive ele falou comigo durante o filme Noé, mostrando que o amor supera o ódio. Pelo menos em teoria.
b)      Essa ideia de “seres do além construírem algo” vem de uma antiga lenda judaica em que Salomão (aquele rei famoso...) constrói o templo de Jerusalém utilizando um anel que controla demônios. Esse anel foi dado a ele por Miguel e com isso, Salomão captura Asmodeus que o ensina os segredos de partir pedras sem ter que utilizar metais para isso. São esses “demônios” que na história (eu disse hISTÓRIA) constroem o templo e conta-a tradição que, durante a construção do fabuloso templo, não se escutava qualquer ruído embora ali a pedra fosse trabalhada profusamente... Logo, essa “heresia” não foi uma criação do diretor nem do roteirista do filme, mas é algo que a muito tempo atrás já existia como lenda.
c)       Sobre o Noé psicótico... Leiam a história de Jefté. Ponto. Apenas isso.

 O texto não nos dá ferramentas completas para saber o que Noé pensava e como foram os 40 dias dentro da arca, como a família dele entendeu a sua missão... Será que ninguém atrapalhou a construção da Arca? Será q Noé não teve que se impor perante a família e os seus iguais pra poder terminar o serviço? Nós temos apenas conjecturas direcionadas por uma leitura do texto. Nós é que montamos uma visão sobre isso e o filme é uma tentativa de pensar em como poderia ter sido. Não é necessário pensar se aquilo é real ou não. Nós NUNCA IREMOS SABER. Quero deixar bem claro que não quero espiritualizar nada, sei que o correto entendimento da Bíblia não vem apenas (eu disse APENAS) do estudo, mas sim de uma iluminação proveniente do Pai das Luzes, mas obvio que o significado que damos a um texto depende do que nós entendemos, do que vivenciamos, de nosso contexto de vida, de nossos valores... A parte da criação, em que Noé conta como o mundo foi formado pra mim é a melhor parte do filme, pois mostra como Deus pode realmente fazer milagres de maneira a confrontar a NOSSA ideia do que seja um milagre. Thomas Hobbes rejeitava totalmente a ideia de que algo fora da normalidade pudesse acontecer, mas... e se Deus utilizasse justamente a normalidade para subvertê-la? Não quero criar polêmicas, mas a maneira que o filme mostrou como o mundo surgiu foi emocionante e refletiu muito do que o Deus que eu acredito que exista trabalha: um Deus que não precisa empenar a realidade para mostrar que ele tem o controle de tudo. Ele é a própria realidade, tudo está n´Ele. Seria muito fácil ser aquele Deus que os gregos gostavam cheio de trovões e de “poderzão”, mas me parece que Deus não trabalha assim. Ele pode tanto alterar a rotação de uma galáxia quando bem quiser, mas pra isso, utilizar uma supernova pra que o efeito desejado seja alcançado. Deus não precisa berrar no meu ouvido (embora as vezes eu acho que seria bem melhor...) pra me falar alguma coisa. A questão é: eu realmente estou sensível para ouvir o que Ele quer dizer da maneira que Ele quer dizer? O Deus do filme não é mal. Nós é que somos. O Deus do filme nos dá escolhas. Nós é que optamos por trilha-las.

No livro “O fim do poder” o escritor Moisés Naím aponta que estamos passando pela Revolução do “Mais”: temos mais opções, mais vontade de mudar de vida, mais acesso a informação... Com o Facebook todos falam ao mesmo tempo e todos sabem opinar sobre tudo, mas... Somos oceanos de conhecimento com uma polegada de profundidade. Parece-me que temos em contraponto a esse MAIS, menos reflexão, menos paciência, menos noção do que é ARTE do que é VIDA. A arte não é uma imitatio socrática (para Hegel, a simples imitação produz o tédio... recado que anda sendo esquecido por nossos aspirantes a artistas), ela pode nos dar um recado de algo que não foi visto nem pensado. Nos falta sensibilidade pra apreciar um produto e separamos o que vemos do que somos.

 Nos sobra espírito de Cruzadas e nos falta calar a boca e ouvir o outro. Mesmo discordando dele.

3 Comments:

Blogger lucas said...

Muito bom o texto, gostei do filme...

9:09 AM  
Anonymous Matheus Magalhães said...

Muito bom, cara. Me fez refletir.

11:23 AM  
Blogger Luiz Fabiano de Freitas Tavares said...

Excelente texto. Minha esposa adorou o filme; seu texto me deixou ainda mais curioso para assistir!

5:38 AM  

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