Growing up!

Aqui você encontrará meus delirios socráticos, minhas opiniões sobre assuntos diversos e obvio, um pouco da minha percepção de mundo. Tiago de Souza

segunda-feira, novembro 28, 2005

Manolo


Música realmente é um assunto complexo. Harmonias, melodias, arpeggios, staccatos, ritmo, pulsação, sustenidos, groove, acentos, sincopes, contratempos, vamps. A música é uma arte extremamente enigmática. Nenhum campo da arte influencia tanto os nossos sentidos (e por que não toda a nossa vida?) como ela - imagine que você está lendo esse texto inútil e uma nota é percutida num piano (...TÌÌÌÌMMMMmmmm...). Essa nota por si só é capaz de mudar atmosfera do seu ambiente - o que prova que o elemento sonoro da música é um agente estranho e poderoso, que seria tolice subestimar.
A maioria dos historiadores concorda que se a música teve uma espécie de começo, isso aconteceu através da batida de um ritmo. A fascinação e o impacto emocional que um ritmo simples, repetido continuamente, é algo que escapa a análise. Quem já foi numa rave sabe do que eu estou falando. Vide o exemplo das porcarias que são tocadas hoje em dia. Calypsos, Xandes, Tchan’s, Dylons, quebra barracos... essas bostas conseguem contagiar (não se sabe como...) um número imenso de pessoas. Eu disse pessoas? Esqueça... Mas não escrevi esse testamento todo em vão caro leitor. O que me interessa não é divagar sobre a essência da música aqui. È que uma das coisas que mais me incomoda é uma velha questão que ainda está pendente entre os protestantes: “Música não religiosa é coisa do capeta?” “É errado eu escutar Chico Buarque? Dream Theater? Metallica? Jobim? Oasis? Allanis? Porque escutar Mozart, um devasso que escrevia músicas para bordéis (e era maçom) e não escutar Dave Mathews Band?”.
Na realidade essa pergunta é pra preparar meu caminho, caro leitor esforçado, pois vou apresentar a vocês um amigo meu do Ensino Médio.
Manoel. Mais conhecido como Manolo.

Costumo dizer que o meu Ensino Médio lá no João Luiz do Nascimento, uma falida escola técnica estadual, além de ser uma época mágica, onde conheci pessoas incríveis (e algumas estúpidas também...), e lanchei de graça durante três anos, reservou para mim duas coisas ruins e uma coisa boa:
Primeira (ruim): eu sai de lá sem saber nada de Administração ( e olha que eu estudei isso durante 3 anos...).
Segunda (ruim): eu devia ser muito feio, pois não consegui beijar ninguém do João Luiz naqueles três anos.
Primeira (boa): Comecei a escutar rock exaustivamente naquela época.

Deu pra notar que a música esteve presente em todos os momentos do meu Ensino Médio. Conheci nessa época Oasis, Foo Fighters, YES, Red Hot, Genesis, REM, Police, Tears for fears, Allanis, Paralamas, e uma infinidade de grupos, bandas e cantores.
Só que no meio desse ambiente de sonho aconteceu uma tragédia. Manolo chegou quase chorando na escola. Manolo era querido por todos, era grandão, meio desengonçado, e gago. Por isso chamávamos de Manolo, meio que para criar uma antítese entre o apelido diminuto e a sua pessoa. Também era meio burrinho, sim, mas isso era questionável, pois naquela época o João Luiz era considerado um dos colégios detentores da nata educacional de Nova Iguaçu City. Ah… falta um pequeno detalhe: o pai de Manoel era um pastor evangélico. E o pior: Manoel era fã de carteirinha do Guns and Roses.
Prontamente perguntamos o porquê do desespero de Manoel.
Manoel nos disse o que aconteceu, quase perdendo a respiração, numa mistura de ódio e vontade de chorar:
- Me- meu p-pai mandou eu quebrar to-todos os meu discos do Guns a-a-and Roses...
Putz… aquilo foi um golpe para o rapaz. Vou sintetizar a história pra vocês: estava rolando uma oração na casa do Manoel, daquelas bem “quentes” e o pai num aceso de extremismo soltou lá da sala a seguinte pérola:
- Manoel! vem cá mancebo!
- Q-que q-que foi p-pai?
- Aqueles discos que você tem no quarto são do capeta!
- Que i-isso p-pai!
- Varão… se você não queimar esses troços, o capiroto vai tomar conta da sua alma!!!!!Voxê quer isso mancebo?
- Na-não… isso na-não p-pai!
- Então você já sabe o que fazer…
- Te-tenho q-que jogar fora?
- Não! Você tem que queimar! Queimar! Queimar!!! Glória!!!!!!

Manoel nos contou que sentou um arrepio. Sentiu que devia realmente fazer aquilo, mesmo contra a sua vontade. Entrou no quarto como um raio, olhou para os discos no canto do quarto e pegou-os de uma só vez. Imaginem a cena… Ele olhou para os discos pela ultima vez… Manolo chegou a dizer que parecia que Axl Rose começou a se mexer na capa de um dos discos… ele prendeu a respiração, pegou uma caixa de fósforos (marca Olho… rsrs) foi para o quintal e fez uma fogueira com os seus discos enquanto os gritos da galera da igreja ecoavam pelo quintal, reverberando no crepitar das chamas… (putz… exagerei aqui… rsrs).
O pai ainda disse da porta de casa:
- Manoel, eu trouxe aqui essa obscenidade do demônio pra você queimar também…
Era uma camisa do Guns and Roses, que Manoel só tinha conseguido comprar na Alquimia (famosa loja de rock em Nova Iguaçu) depois de fazer uma vaquinha com o pessoal do colégio. Uma preciosidade, pelo menos pra ele. Era surrada, mas era sua. Estava imunda, mas era sua.
Manoel pegou a blusa tremendo (enquanto contava pra gente, seus olhos pareciam soltar as mesmas labaredas que a fogueira do seu quintal) e sem olhar para as chamas lançou a blusa, que foi caindo lentamente rumo a seu destino… o inferno em forma de fogueira que tinha sido montado no quintal do Manoel.
Após essa historia, todo mundo ficou meio traumatizado na turma. Manolo demorou muito tempo pra se recuperar do trauma. De vez em quando ele sonhava que o Axl Rose subia em cima dele na cama e tentava sufoca-lo dizendo:
- Por quê? Por quê? Por Quêêêêêêê??????
O problema é que Manoel não conseguia se conformar com tudo aquilo. Depois que aconteceu, o sangue esfriou, a cabeça “voltou” pro lugar, ele viu a suposta “besteira” que tinha cometido. Manoel não se aquietava. E o pior: passou a ter acessos de loucura que eram a verdadeira alegria da galera da minha sala. Sim, a situação era triste, mas sinceramente, Manolo nos proporcionava momentos inesquecíveis. Certa vez, estávamos com uam galera da turma no Top Shopping (o famoso Shoping do “Oi”) quando alguém mandou essa pra ele:
- Manoel, duvido você soltar um palavrão aqui no meio do Shopping…
- A é? Aé? Perae…

A cena foi inacreditável. Manolo foi para o meio da Praça de alimentação. Os olhares se concentraram nele, olhares incrédulos é verdade, mas ávidos por comprovar que o cara tinha realmente enlouquecido. Manoel afastou as pernas, abriu os braços (imaginem a cena…) e mandou com toda a força dos seus pulmões:
- POOOOOOORRRRRRRRR*************!!!!!!!!!!!!!!!
O resto da cena eu não pude ver: fechei os meus olhos e dei meia volta, quase sufocado pela vontade de gargalhar e cair no chão. As risadas foram gerais, o shopping tremeu… Manolo ficou ali, no meio, parado, bufando, suado, sorrindo pela tarefa estar concluída e sua honra intacta…
Na saída, no despedimos do resto da turma e fomos embora, adivinhe com quem eu fui embora? Isso… com ele. Manolo.
Perto ainda do Shopping, o destino nos guardava uma das suas peças mais loucas. Manolo andava pela beirada da rua e eu estava na calçada, a conversa rolava agradável, estávamos nos aproximando de uma esquina quando fomos surpreendidos por um barulho de carro aumentando. Quando olhei pra trás, um carro literalmente voando baixo passou quase atropelando Manoel. Meu amigo… o moleque deu um pulo pra trás digno de Wolverine, e por pouco escapou de ser massacrado pelo carro. O veículo virou a toda na esquina e sumiu da nossa vista. Manolo permaneceu impassível diante da sua “quase morte”. Eu, como sempre faço nesses momentos, fiz a pergunta mais clichê possível para não me comprometer:
- Você tá bem cara?
Manolo não disse nada, só acenou com a cabeça um “Sim” e continuou a caminhar. Ignorei o acontecido e continuei ao seu lado imaginando um assunto para quebrar aqueloe gelo. Entretanto, algo nos aguardava. Quando viramos a rua, quem estava parado no sinal, ali na nossa frente?
Sim.
A poucos passos de distancia estava ali.
O carro que quase acabou com a existência de Manoel.
Instintivamente olhei para ele e pressentindo algo terrível, esbocei um pedido de “Calma” para Manoel. Mas foi inútil. O moleque já estava correndo em direção ao carro. Meu coração disparou. “E se forem bandidos? E pior… e se for um policial? Putz... Que loucura o Manoel vai dizer? E se os caras mandarem bala? E o pior... se eu levar bala? Merda...” Esses pensamentos invadiram a minha mente a ponto de quase ouvi-los. Continuei a caminhar, amedrontado é obvio, devido ao fato de estar quase do lado do carro. A janela estava aberta. Manoel olhou para dentro do carro e repetindo a cena do Shopping, soltou um estrondoso...
- POOOOOOORRRRRRRRR*************!!!!!!!!!!!!!!! Querem me matar? Querem me matar? É? É? então mata! Passa por cima! Isso! Mata mêrmo! Já basta os discos queimados! Merda! Eu não agüento mais! Mata! Mata! É um favor! Ta esperando o quê? Bosta! Passa por cima logo! Quer me matar? É? É?

E finalizou sua catarse com mais um...
- POOOOOOORRRRRRRRR*************!!!!!!!!!!!!!!!

Quando me aproximei, já me preparando para o pior, olhei para dentro do carro e quase morri de susto: um casal de velhinhos se encolhia desesperadamente.
Isso mesmo.
Um casal de velhinhos.
A senhora estava sentada no banco do carona, com a janela aberta a poucos centímetros daquela besta fera chamada carinhosamente de Manolo, ela estava vestida lindamente com um vestido de florzinhas. Com seus cabelos levemente encaracolados e dotados de um tom acinzentado mas que não disfarçava os fios alvos que pendiam de sai cabeça, ela tremia e fechava os olhinhos devido a saraivada de baba que se desprendia da boca imensa de Manolo. O velhinho (seu esposo suponho), carequinha, com bochechas de buldogue velho, estava com os olhos arregalados, os óculos chegaram a cair do seu rosto devido ao susto e desesperado, começou a girar desesperadamente o mecanismo que fechava a janela do carro, num impulso angustiante para salvar a sua amada da meia idade e dizia baixinho:
-Calma menino... calma...
O sinal abriu.
Verde.
O carro disparou cantando pneu.
Manolo estava bufando e novamente eu fiz a pergunta mais clichê do mundo:
- Você tá mais calmo?
- Como nunca estive na vida... como nunca estive... nunca...


Depois desse dia, Manolo voltou a ser o que era antes.
E recuperou toda a coleção do Guns and Roses.