Growing up!

Aqui você encontrará meus delirios socráticos, minhas opiniões sobre assuntos diversos e obvio, um pouco da minha percepção de mundo. Tiago de Souza

sábado, novembro 16, 2013

Acisum



 


Esse texto surgiu como catarse de certos pensamentos que me “surgiram” durante uma reflexão trazida pelo Pastor André Santanna. Na ocasião, ele falou sobre como a Música pode servir de metáfora extremamente poética na busca por respostas à questões não simplesmente teológicas, mas profundamente existenciais e, portanto, urgentes. É de Blaise Pascal o texto em que o ser humano, de forma indutiva, é comparado a um indivíduo que, condenado a morte, prefere passar as suas ultimas horas jogando cartas do que buscando descobrir o porquê de estar prestes a morrer. Durante a exposição do tema pelo pastor-poeta, um texto de Saramago foi citado como um exemplo incrível do poder místico da Música e a partir dele, alguns outros exemplos foram surgindo linearmente na minha cabeça. Anotei tudo no celular (viva a tecnologia) e, depois de muito ruminados, esses fragmentos vieram a luz no texto que você está prestes a ler. Perguntei-me na ocasião se existe Música de morte e se existe Música de Vida... Não pensei em termos de metáfora, pensei literalmente. A Música pode ser algo mais do que apenas... Música? Bom, dependendo do que você pode achar que seja Música, para algumas perguntas a resposta é Sim. Para as outras, um Não. Para outras... Confesso que não sei.


Li um dia desses. Não lembro onde. Estudos com ondas sonoras são feitos para MATAR pequenos animais, como cupins. Isso mesmo. A ciência busca maneiras objetivas de identificar frequências sonoras capazes de interromper o ataque de cupins da espécie Cryptotermes sp. (Isoptera: Kalotermitidae) em obras de arte e patrimônio em madeira, com base na alteração do seu comportamento natural quando expostos a um ambiente sujeito às variações impostas pelas ondas sonoras. Ah! E existem experimentos que buscam descobrir frequências sonoras que seriam capazes de literalmente explodir objetos. Quem nunca viu uma imagem em que um cantor quebra uma taça de cristal ao atingir uma frequência sonora específica com seu canto? Pois é. Estão querendo descobrir que frequências poderiam romper determinados tipos de materiais e até MATAR um ser humano. É só caçar no Google: arma sônica.
O simples SOM pode matar. Mas... E a Música? Será que dá pra matar com ela? Dois rápidos exemplos.


a) Permita-me agora apresentar você ao compositor Aleksandr Scriábin, que viveu durante o século XIX e morreu no inicio do XX. Leia e tire suas conclusões:

“Influenciado pelo espiritualismo teosófico, ele concebeu uma linguagem harmônica que vibrava em torno de um acorde místico de seis notas; sua obra magna inacabada, Mysterium, programada para estrear no sopé do Himalaia, produziria nada mais nada menos do que a aniquilação do universo, da qual homens e mulheres reemergiriam como almas astrais, libertadas da diferença sexual e de outras limitações corpóreas”. 

b) Na Bíblia (óbvio que eu chegaria nela) temos mais um exemplo de como a música pode ser utilizada para propósitos distintos. Segundo os musicólogos, o primeiro jingle foi feito por J. S. Bach e era uma propaganda para a venda de café. Discordo. O primeiro jingle, e entendam jingle como “música feita para efeitos propagandísticos”, foi feito por um cara chamado Lameque. Quando ele matou dois homens (alguns teólogos mais afoitos acreditam que ele pode ter matado o próprio Caim... Brrrrr) ele se alegrou com seu pecado e até fez uma canção que eu chamo de “Rap do Matador”:

“Escutem-me; mulheres de Lameque e marquem bem o que eu digo: Matei um homem porque me feriu, matei um moço porque me machucou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

Ou seja, Músicas de Morte...
E o contrário?
a) No livro Intermitências da Morte o escritor José Saramago, abusando de sua prosa por vezes “alucinógena”, escreve que num determinado dia “Ninguém morreu”. A Morte resolveu tirar férias. O mundo virou um caos. Óbvio que de inicio as pessoas gostaram da ideia, mas imagine a situação de uma pessoa que se acidenta, se quebra toda, mas TODA mesmo, mas não pode morrer porque a Morte resolveu tirar férias. A Morte, cansada de tanta reclamação resolve a questão com um método simples: ela iria avisar quem iria morrer com uma carta dias antes do óbito. Ela mesma iria escrever as cartas e endereçá-las aos “sortudos” que teriam tempo para se preparar para o triste porvir. Mas... Uma das cartas enviadas do escritório da morte acaba voltando. A Morte fica ao mesmo tempo atônita e curiosa e depois de múltiplas tentativas de envio e consequentes retornos do envelope, ela decide investigar. Não quero contar maiores detalhes (vai que te convenço a ler o livro?), mas apenas quero adiantar que a pessoa que se “recusava a morrer” era um violoncelista. Posso adiantar só mais uma coisa? A música desse obscuro intérprete foi divina o suficiente para fazer a Morte mais uma vez tirar férias.  

b) Davi (aquele, que matou Golias) usava sua habilidade com a harpa para fins místicos e claramente terapêuticos. De inicio, ele conseguia suas “gigs” porque era um excelente músico e pelo visto, tinha uma inteligência interpessoal excepcional, pois sua fama chegou até o palácio do rei (na ápoca um cara chamado Saul). Isso seria parelho, permita-me a comparação, se suas habilidades de trabalho, caro leitor, chegassem aos ouvidos da presidente Dilma. Isso mostra o quanto o potencial de Davi era assombroso porque, se hoje em dia tá difícil até mesmo fazer com que nosso “trabalho” chegue em determinados músicos que as vezes moram a quadras de nossa casa, que dirá chegar aos ouvidos de líderes de Estado. Ao ser levado para a corte do rei Saul, que ao que parece sofria de sérios distúrbios psicológicos decorrentes de uma opressão de caráter espiritual, usou a música para trazer paz e vida para o rei.
Ou seja, Músicas de vida...

Entretanto, pensando de maneira fenomenológica, cada indivíduo apreende e organiza de maneira bem específica e idiossincrática, toda uma rede de significados e simbolismos relativos a um determinado objeto. Eu posso ouvir uma música, ver uma foto ou até mesmo estar diante de uma determinada sequencia de acordes, e a partir desse “algo” extrair um significado que fatalmente será diferente do seu. Aquela música que antecede o plantão jornalístico da Rede Globo assusta muita gente, pois ela antecede a uma possível noticia de tragédia e afins, mas para a pessoa que a criou, o simples fato de ouvi-la antes do anuncio de uma catástrofe ou de uma noticia exclusiva, pode trazer uma sensação de orgulho profissional e satisfação.  Na mesma história de Davi, uma pequena canção foi suficiente para acabar com a relação entre ele e o rei. Ao voltar de uma batalha sendo carregado nos ombros do povo, Davi ouviu o seguinte “funk ostentação”:

“Saul matou milhares
Mas Davi matou dezenas de milhares!”.
(Tum pá pá Tum Tum pá tuguduuum)

Quando Saul ouviu isso, ele buscou de todas as maneiras matar Davi. Por causa do significado dado a uma pequena canção, e que nem era tão boa assim. Dito isso, existe realmente Música de Vida e Música de Morte? A música por si só é capaz de fazer alguma coisa ou somos nós que a partir dela podemos sentir coisas boas ou ruins? John Dewey no livro A Arte como Experiência rejeita a concepção de arte que a espiritualiza, retirando-a da ligação com os objetos da experiência concreta, ou seja, todas as teorias que isolam a arte de sua apreciação, colocando-as em um campo próprio, desvinculado das outras modalidades do experimentar, traduzindo para um leitor mais desligado, somos nós e nossas ferramentas culturais que damos significado a Arte. Nas palavras de William James, um pensador pragmático: 

“O ISSO (da Arte) é dela mesma, porém, o O QUÊ depende do QUAL e O QUAL depende de NÓS”

Isso não quer dizer que eu estou “frio” ou “cético” com relação a musa de inúmeros artistas, mas significa que tenho pensado sobre o assunto e cada vez mais percebo que a Música se aproxima do que Stravinsky dizia: ela não diz absolutamente nada - somos nós que orientamos e definimos o impacto que ela terá sobre nós. Mesmo que a Música nos invada, nos assalte, nos faça chorar, bater em algo, rodopiar como um dervixe ou nos acalme, isso só acontece se, como disse aquele “judeu estranho”, nós abrirmos a porta. Ultimamente com relação a isso tenho tido uma postura que Max Weber no texto A Ciência como vocação chamou de “Desencantamento com o Mundo”, ou seja, ao invés de dar explicações mágicas, acabo pondo os pés no chão e buscando dentro de mim (nós) mesmo (s) a significância do que pode realmente não ter significado. Mas, deixe-me esclarecer uma coisa. Não estou tratando aqui de questões de FÉ. Como já expliquei antes, Fenomenologia... cada um levanta a bandeira que quiser. Acredito sim, que a Música pode ser uma ferramenta para inúmeros contextos espirituais, e entendo que na atual situação do Cristianismo, a ela está sendo maltratada e até mesmo usada de forma incorreta, obtusa e burra, ao mesmo tempo que cantores e movimentos são feitichizados pelos "fieis". Deixo por hora, minhas convicções religiosas para um outro momento e quero apenas falar de forma, digamos, imparcial. Volta no Weber. Se liga na prosa do malandro:

“Quem continua ainda a acreditar - salvo algumas crianças grandes que encontramos justamente entre os especialistas - que os conhecimentos astronômicos, biológicos, físicos ou químicos (e eu, na minha humilde interpretação e para a utilização do trecho a nosso favor, acrescento aqui, os conhecimentos artísticos) poderiam ensinar-nos algo a propósito do sentido do mundo ou poderiam ajudar-nos a encontrar sinais de tal sentido, se é que ele existe?”.

Mas, eis que a estocada final Weberiana chega como uma brisa:

“O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo "desencantamento do mundo" levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes. (...) A quem não é capaz de suportar virilmente esse destino de nossa época, só cabe dar o conselho seguinte: volta em silêncio, sem dar a teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas Igrejas. Elas não tornarão penoso o retorno. De uma ou de outra maneira, quem retorna será inevitavelmente compelido a fazer o "sacrifício do intelecto".


Agora, quer descontruir tudo o que eu escrevi?
Pega aquela Bíblia (não disse que o momento ia chegar?) que está na estante da sua casa e jaz aberta a mil anos no Salmo 91 e procura o texto que está em Mateus 26,30 e Marcos 14,26. A situação é a seguinte: Jesus tinha acabado de fazer sua ultima refeição aqui na terra e estava indo para os instantes que antecediam sua prisão e consequente morte. Ele iria para o Monte das Oliveiras e ali seria preso (assista o filme “Paixão de Cristo” do Mel Gibson: essa cena é a primeira do filme: a que Jesus está orando no monte, momentos antes de sua prisão). Ele sabia de tudo o que aconteceria (ao contrario do que Saramago dizia...). Lembra do texto de Pascal que eu citei lá no começo do texto? Pois bem.  Ao invés de “jogar cartas”, Jesus fez o seguinte:

Tendo cantado um hino, saíram para os montes das Oliveiras.

Rapaz... ele tava pra bater as botas e CANTAVA! Mas que hino seria esse? Que Música fantástica seria essa que antecederia a basilar modificação do mundo espiritual e material? Ela seria uma beracha (bênção). O hino, que Mateus e Marcos dizem que Jesus e os discípulos cantaram no final da ceia são os chamados “Salmos do Hallel” (Hallel significa “Louvor”), ou seja, os Salmos 113-118, cuja recitação encerrava a ceia pascal.
Tá ai, caro leitor. Já dizia Fritjof Capra que os orientais são um povo de contrastes e suas práticas são recheadas de conceitos que “crescem ao se anular”. Temos um paradoxo: uma Canção que antecedia a MORTE, mas que no fim das contas, nos deu a VIDA.

Cabe a você querer cantá-la ou não.