Dinossauro na Arca não pode Noé...
Depois que a poeira baixou, me senti confortável pra
escrever algo sobre a polêmica em torno do filme “Noé”. De inicio, ao ver o
trailer quis muito assistir. Muito mesmo. Sempre achei que a Bíblia possui
histórias incríveis e que mereciam sair das páginas (e da minha imaginação)
para as telas do cinema. É justo. É necessário, num mundo onde os ícones estão
sumindo e dando lugar aos meros signos. Entretanto, percebi uma enxurrada (que
ironia...) de críticas e inúmeras manifestações de repúdio ao filme por conta
de uma suposta carga herética e pela óbvia “falta de respeito com o texto
bíblico”. Não estou aqui defendendo o filme. Estou apenas defendendo a validade
do discurso exteriorizado pela obra de Arte. Heidegger escreve que ninguém
pensa na maneira que uma parede é feita ela está lá e pronto,
mas apenas a obra de arte nos faz refletir sobre seus materiais, ou seja, do quê ela é feita. Nisso, podemos
entender que esse filme superou as expectativas.
Nesse texto vou dizer o que eu
acho disso tudo.
Em primeiro lugar,
o texto bíblico, como escreveu Orígenes, é uma verdadeira “tapeçaria de
significados”. Não dá pra ler num único sentido e pronto. Cada história, cada
conto, cada situação, cada ambiente possui inúmeros vieses que podem ser
analisados e entendidos a partir de determinado contexto histórico, teológico e
metafórico. Não dá pra ser linear. Não dá pra ser horizontal. O texto bíblico é
incrivelmente complexo e nenhum outro texto da antiguidade se assemelha ao tipo
de construção textual e simbólica que a Bíblia possui. As histórias transbordam
veracidade (tirando algumas fantásticas como Jonas...) e uma intensa carga
emocional (É só ler Jeremias...). Não tem Homero, não tem Livro dos Mortos, não
tem Eneida que se aproxime: nada se aproxima do peso das palavras que formam
essas histórias escritas por pessoas da idade do bronze. A cena do pai de
Heitor chorando aos pés de Aquiles pedindo o corpo do filho pra ser enterrado
parece ter sido escrito por uma criança quando lemos o trecho do reencontro de
José e de seus irmãos. Mas o problema está justamente em nós. O texto bíblico é
tão simples, tão direto, tão obvio em sua complexidade (conseguiram acompanhar
a tortuosidade da frase?) que nós não sabemos lidar com ele. Estamos
completamente vacinados contra a carga dramática do texto bíblico. Não nos
emocionamos quando lemos que “Jesus chorou”, muito menos quando lemos sobre o
medo de Caim depois de matar seu irmão Abel. Nós somos insensíveis a tudo isso.
Choramos assistindo um filme pipoca de Hollywood, mas não movemos um músculo do
rosto quando analisamos a cena em que o profeta Elias está sozinho, em pé,
atordoado, pensando no que vai fazer porque deitado numa cama, imóvel, morto, está
o filho único de uma mulher que ao que parece tinha tido um aneurisma enquanto
trabalhava com o pai. A mulher era uma grande amiga de Elias e ele para
recompensá-la orou a Deus para que ela pudesse ter filhos, mesmo sendo de idade
avançada. E agora que o filho veio... Ele morreu. A Bíblia nos foge porque nem
sempre a interpretação que nós damos é a mais correta: é só perceber a tragédia
que são nossas interpretações do livro de Apocalipse. E não venha me dizer que
é o Espírito Santo que interpreta, porque o se depender das abobrinhas que as
pessoas andam falando por ai, o Espírito Santo anda passando longe de algumas
escrivaninhas...
Permita-me
repetir um trecho do meu ultimo texto aqui no blog. “Meu
irmão apareceu com um livro chamado “A Arte da Narrativa Bíblica” de Robert
Altler que me fez parar pra pensar. No livro, ele apresenta uma maneira de
analisar a Bíblia que chega a ser tola de tão simples: ao invés de apenas
tentar desacreditá-la, que tal analisar os textos hebraicos e cristãos com as
mesmas ferramentas e o mesmo olhar que aplicamos a textos consagrados da
literatura ocidental como Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Milton e
outros? Porque somente falamos que “fulano não escreveu o livro tal”, ou “os
padres safados incluíram coisas na Bíblia que não estavam lá” ou outras teorias
que dominaram o imaginário e os estudos bíblicos a partir do século XIX com as
chamadas “Alta Crítica” e “Baixa Crítica”. Muita gente passou a abandonar a Fé e
num simplismo idiotizante, a incentivar a postura de menosprezo ao texto
bíblico. Altler não cai no simplismo de tratar o texto de
maneira ingênua, como se ele fosse uma única estrutura, mas aplica uma crítica
soberba ao texto. O trecho que me chamou a atenção é o que ele diz que com
pouquíssimas “peças” textuais, os escritores da Bíblia conseguiam impactar o
leitor, fazê-lo pensar e repensar o texto, buscando com as parcas informações recebidas pelo texto bíblico, utilizar
referencias anteriormente lidas para construir cenários, características dos
personagens e até mesmo completar a história com sua própria imaginação”.
Falemos de Noé.
A história descrita na
Bíblia pode ser dividida em 3 partes muito simples:
a)
Noé era bom
e por isso será salvo. Ele recebe uma missão de Deus: fazer a arca pra salvar
sua família e os animais;
b)
Noé completa
a arca, o dilúvio cai, geral morre e ele se salva;
c)
Noé e sua
família saem da arca e a partir dali irão repovoar a terra.
Agora pensa como Hollywood poderia fazer um filme só com isso? Óbvio que
existem filmes cujo argumento é bem menor que o da história de Noé, mas abusam
de tiroteios, de mistérios, de ação, de intrigas... Mas a história de Noé não
tem nada disso. Ela é simples. Dura. Cinza. Seca. Óbvio que quando ela fosse
filmada, o enredo teia que ser mais... digamos, atraente. E é ai que os
problemas começaram. Vou apontar as “heresias” do filme:
a)
Deus não
fala com Noé: ele tem sonhos e visões;
b)
Noé utiliza
entorpecentes para ter visões (o Heinseberg do Noé é seu bisavô Matusalém [Quem
assistiu Breaking Bad entendeu essa...]);
c)
A arca é construída
com a ajuda dos Guardiões, que seriam os “anjos caídos”;
d)
Tubalcaim, o
pai dos ferreiros, tenta intimidar Noé e consequentemente quando a chuva cai,
tenta de todas as maneiras entrar na arca;
e)
Noé vira um
psicótico dentro da Arca e suas ideias a respeito da miséria que envolve a raça
humana fariam Schopenhauer adicioná-lo no Facebook;
f)
Ao contar
sobre a Criação, Noé mistura-a com a Teoria da Evolução (esse tinha tudo pra
ser o crime mais grave...);
g)
A maior
parte do enredo foge do texto bíblico: Os filhos de Noé não tem esposas, a
mulher de Noé indiretamente sacaneia ele, um dos animais é morto dentro da arca
(e automaticamente extinto), a cena de Noé chapadão de vinho não é a mesma que
é descrita na Bíblia, o arco íris acontece de um jeito diferente do que está
descrito na Bíblia, os tefilins utilizados pelos judeus são originários da pele
da serpente do Pecado Original e
novamente, Deus não fala uma palavra com Noé.
h)
O Deus do
filme é mal e perverso.
Bom, se eu esqueci algum dos erros do filme,
perdoem-me, mas a essência é essa dai. A questão é: o filme foi feito
claramente BASEADO na Bíblia e não LITERALMENTE na Bíblia, porque, cá entre
nós... Bíblia não empolga nem vende
ingresso. É só ir à sua igreja durante os cultos no meio da semana e na EBD, ou
então perguntar para os adolescentes que ouvem Thalles e fazem selfies no
Facebook durante o culto se eles sabem aonde está o livro de Sofonias ou quem
foi Jefté. O mais engraçado é que os cristãos acreditam em 3 reis magos, na via
dolorosa, que Paulo morreu decapitado e Pedro crucificado de cabeça pra baixo, que João foi
jogado num caldeirão fervente e não percebem que tudo isso é fruto de uma TRADIÇÃO, e nada disso está na Bíblia. Claro, o filme não poderia se ater as
bases da história judaica. O diretor apenas utilizou o que poderia ser
interessante e inseriu diversos elementos para prender a atenção do espectador,
dar uma boa dinâmica a história e claro, criar polêmica com os “mimimis” dos
cristãos.
Com relação as heresias, vou apenas apontar duas coisas.
a)
Eu
sinceramente nunca ouvi Deus. Nem nunca o vi. Se você já... que bom pra você,
mas creio que Deus pode falar de outras maneiras... Ver Deus aparecendo na
beira da minha cama não é lá um dos meus maiores desejos, mas creio que ele
fala comigo todo o dia, desde uma linda paisagem até aquela voz que é minha consciência,
mas que me leva pra o lugar certo (embora Nietzsche discorde de mim...). Inclusive
ele falou comigo durante o filme Noé, mostrando que o amor supera o ódio. Pelo
menos em teoria.
b)
Essa ideia
de “seres do além construírem algo” vem de uma antiga lenda judaica em que
Salomão (aquele rei famoso...) constrói o templo de Jerusalém utilizando um
anel que controla demônios. Esse anel foi dado a ele por Miguel e com isso,
Salomão captura Asmodeus que o ensina os segredos de partir pedras sem ter que
utilizar metais para isso. São esses “demônios” que na história (eu disse hISTÓRIA)
constroem o templo e conta-a tradição que,
durante a construção do fabuloso templo, não se escutava qualquer ruído embora
ali a pedra fosse trabalhada profusamente... Logo, essa “heresia” não foi uma criação do
diretor nem do roteirista do filme, mas é algo que a muito tempo atrás já
existia como lenda.
c)
Sobre o Noé psicótico...
Leiam a história de Jefté. Ponto. Apenas isso.
O texto não nos dá ferramentas completas para
saber o que Noé pensava e como foram os 40 dias dentro da arca, como a família dele
entendeu a sua missão... Será que ninguém atrapalhou a construção da Arca? Será
q Noé não teve que se impor perante a família e os seus iguais pra poder
terminar o serviço? Nós temos apenas conjecturas direcionadas por uma leitura
do texto. Nós é que montamos uma visão sobre isso e o filme é uma tentativa de pensar em como poderia ter sido. Não é necessário pensar se aquilo é real ou não. Nós NUNCA IREMOS SABER. Quero deixar bem claro que
não quero espiritualizar nada, sei que o correto entendimento da Bíblia não vem
apenas (eu disse APENAS) do estudo, mas sim de uma iluminação proveniente do
Pai das Luzes, mas obvio que o significado que damos a um texto depende do que
nós entendemos, do que vivenciamos, de nosso contexto de vida, de nossos
valores... A parte da criação, em que Noé conta como o mundo foi formado pra
mim é a melhor parte do filme, pois mostra como Deus pode realmente fazer
milagres de maneira a confrontar a NOSSA ideia do que seja um milagre. Thomas
Hobbes rejeitava totalmente a ideia de que algo fora da normalidade pudesse
acontecer, mas... e se Deus utilizasse justamente a normalidade para subvertê-la?
Não quero criar polêmicas, mas a maneira que o filme mostrou como o mundo
surgiu foi emocionante e refletiu muito do que o Deus que eu acredito que
exista trabalha: um Deus que não precisa empenar a realidade para mostrar que
ele tem o controle de tudo. Ele é a própria realidade, tudo está n´Ele. Seria
muito fácil ser aquele Deus que os gregos gostavam cheio de trovões e de “poderzão”,
mas me parece que Deus não trabalha assim. Ele pode tanto alterar a rotação de
uma galáxia quando bem quiser, mas pra isso, utilizar uma supernova pra que o
efeito desejado seja alcançado. Deus não precisa berrar no meu ouvido (embora
as vezes eu acho que seria bem melhor...) pra me falar alguma coisa. A questão
é: eu realmente estou sensível para ouvir o que Ele quer dizer da maneira que
Ele quer dizer? O Deus do filme não é mal. Nós é que somos. O Deus do filme nos
dá escolhas. Nós é que optamos por trilha-las.
No livro “O fim do poder” o escritor Moisés Naím aponta que estamos passando pela Revolução do “Mais”:
temos mais opções, mais vontade de mudar de vida, mais acesso a informação... Com
o Facebook todos falam ao mesmo tempo e todos sabem opinar sobre tudo, mas... Somos
oceanos de conhecimento com uma polegada de profundidade. Parece-me que temos
em contraponto a esse MAIS, menos reflexão, menos paciência, menos noção do que
é ARTE do que é VIDA. A arte não é uma imitatio
socrática (para Hegel, a simples imitação produz o tédio... recado que anda
sendo esquecido por nossos aspirantes a artistas), ela pode nos dar um recado
de algo que não foi visto nem pensado. Nos falta sensibilidade pra apreciar um produto
e separamos o que vemos do que somos.
Nos sobra
espírito de Cruzadas e nos falta calar a boca e ouvir o outro. Mesmo
discordando dele.